domingo, 28 de dezembro de 2008

Constituição - O que é? (1)

Ao ler o título dessa minha primeira postagem, pode passar-lhe pela cabeça que esse é um tema introdutório, algo que não tem lá grande importância porque não desperta grande controvérsia e que só está presente aqui como uma espécie de obrigatoriedade formal, uma questão meramente ritualística e protocolar: começar a falar de Direito Constitucional falando sobre Constituição.

Afinal, quem teria dúvida sobre o que é a constituição? Não é óbvio que constituição é aquele livrinho com uma bandeira brasileira na capa, onde estão contidas as normas fundamentais do país? Não é óbvio que essas normas tratam da organização do poder político e da proteção dos direitos dos cidadãos, estabelecendo pautas obrigatórias para todos e condições básicas de nossa convivência social? O que ainda há para discutir sobre isso? Não basta ficar com essa noção inicial e seguir adiante?

Pois é. Não. Não basta. Há muito mais que isso para discutir.

Na verdade, não existe apenas um único conceito de constituição. Existem vários. E cada um deles apreende essa noção a partir de uma perspectiva distinta, com fundamentos, ênfases, propósitos distintos. Nessa postagem e nas próximas, vou esboçar alguns dos mais influentes conceitos de constituição, apontando seus respectivos autores. (Minha fonte principal será o cap. 3 do Curso de Direito Constitucional, de Uadi Lammêgo Bulos, associada com várias passagens do Direito Constitucional e Teoria da Constituição, de J. J. Gomes Canotilho.) Nessa primeira postagem vou abordar o conceito chamado de Constituição Sociológica, de Ferdinand Lassale.

O conceito de constituição sociológica, de Ferdinand Lassale, se tornou muito famoso e muito influente. Lassale, num texto célebre chamado "O que é uma constituição?" (na verdade uma transcrição da conferência que ministrou na Prússia em 1863), disse que uma constituição tinha que se apoiar nos fatores reais de poder, do contrário não passaria de uma folha de papel. Vamos tentar entender o que ele queria dizer com isso.

Bom, no momento em que se faz uma constituição, se faz essa constituição em e para certa sociedade, uma sociedade que já existe, em que já há certos indivíduos e certos grupos, certa organização econômica e política, certa distribuição da riqueza e do poder. Alguns grupos sociais têm mais poder, outros têm menos. Alguns grupos sociais mandam, outro obedecem, alguns exploram, outros são explorados, alguns têm controle direto do que acontece, outros são coadjuvantes do processo, levados pelo fluxo que não produziram. Ora, essa situação de riqueza e de poder que já existe é o que Lassale chama de "os fatores reais de poder". A idéia de Lassale sobre a constituição é que ela deve espelhar essa situação, quer dizer, deve atribuir poder a quem já tem o poder, deve garantir a riqueza de quem já tem a riqueza, de que ela deve apenas ratificar uma situação de distribuição da riqueza e do poder que já existe.

O motivo é que, para Lassale, os fatos têm mais peso que as normas. Para ele, se uma sociedade se organiza de tal forma que o grupo A tem mais riqueza e mais poder que o grupo B, não vai ser o fato de que uma constituição estabeleça que A e B devam ter a mesma quantidade de riqueza e a mesma quantidade de poder que vai fazer com que A e B se tornem realmente iguais. Pelo contrário, A vai continuar tendo mais riqueza e mais poder que B, e a referida constituição, na medida em que não reconhece esse fato, na medida em que o contraria ou se revolta contra ele, vai sucumbir no vazio, vai tornar-se apenas uma "folha de papel" sem importância real, sem efeito real, sem nenhuma correspondência com a realidade. Ao contrário, nesse mesmo exemplo, se a constituição estabelecesse que o grupo A tem mais riqueza e poder que B, como de fato já ocorre, aí sim ela teria força, uma força que ela extrairia dos fatos, correspondendo, assim, à realidade que efetivamente existe.

A tese de Lassale é de que as normas não mudam os fatos: ou as normas se apóiam nos fatos, enunciando-os como eles já são, e adquirem, por empréstimo, a força da realidade, ou as normas ignoram os fatos, enunciam um "dever-ser" que ainda não é, uma situação ideal que ainda não existe, e, nesse caso, se tornam um documento impotente, apenas uma "folha de papel" sem qualquer poder normativo, uma caricatura de norma, uma piada de norma. Acreditar que a constituição vai mudar a realidade, para Lassale, é bobagem. Normas são apenas traços impressos em papel. A força verdadeira vem dos fatos. Se ocorrer de o grupo B, que tinha menos poder, mudar sua situação e passar a ter o mesmo poder que A, será por causa de uma dinâmica que tem a ver com os fatos, os fatos da economia, os fatos da política, os fatos da cultura, os fatos da sociedade, e não com as normas.

Essa forma de ver a constituição, essa, digamos, concepção impotente de constituição (que no fundo faz com que ela seja sempre apenas uma "folha de papel", com a diferença de poder ser uma "folha de papel" que enuncia a realidade ou não) vai na contramão do movimento pelo qual as constituições surgiram na modernidade. As constituições, que foram filhas das revoluções burguesas (Revolução Gloriosa inglesa, Independência Norte-Americana e Revolução Francesa - das quais vou falar noutra postagem), pretendiam mudar a sociedade, mudar todos os costumes e todas as instituições, fazer a transformação do Ancient Régime ("antigo regime", quer dizer, o absolutismo monárquico e a divisão da sociedade em estamentos, com distribuição desigual de riqueza, de poder, de direitos e de deveres etc.) em Nouveau Régime ("novo regime", ou seja, as repúblicas democráticas, com poder limitado, com cargos eleitos e temporários, com representação popular etc.). Portanto, as constituições modernas surgem com a promessa de serem documentos tranformadores, verdadeiros motores da mudança social, marcos de uma nova era na história daquelas sociedades.

Lassale está dizendo que tal quantidade de poder de intervenção e tranformação sobre a sociedade não pode de modo algum ser atribuído à constituição. Uma constituição é apenas uma norma, e normas, para Lassale, não mudam fatos. Apenas fatos mudam fatos. Sendo assim, a Constituição inglesa, a Constituição norte-americana e a Constituição francesa na verdade não tinham aquele poder que se lhes atribuiu. Houve, de fato, grandes e profundas transformações naquelas sociedades, mas essas tranformações se deveram aos fatos (às mudanças políticas, à ascenção econômica da nova classe burguesa, à industrialização, ao imperalismo, à urbanização etc.), e não às normas constitucionais. Lassale estaria, assim, negando e procurando deixar para trás a noção moderna de Constituição como documento transformador. Ao contrário, a constituição seria um documento subalterno e impotente diante da realidade: ou a reconhece como ela é, ou se torna mera "folha de papel", sem nenhum poder.

Como veremos noutra postagem, o principal opositor dessa concepção de constituição foi Konrad Hesse, no texto "A força normativa da constituição", em que procura mostrar que uma constituição tem, sim, poder de transformação e que assumir para si esse poder não implica ignorar os "fatores reais de poder", que nunca podem ser descuidados. Esse será o assunto da próxima postagem.

4 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Então te encontrei em outro blog. Mais um endereço para as minhas horas de navegação séria. Abraços e sucesso, tanto no novo blog quanto na nova empreitada acadêmica.

Anônimo disse...

Horas de "navegação séria", é? rsrsrs Obrigado, amigo, pela visita e pelo comentário. Espero tê-lo sempre por aqui. Ah, e aceito também sugestões de temas para postagem. Um abraço!

Anônimo disse...

professor uma pequena duvida sobre a concepção de lassale.
bom ja que ele disse que uma constituição tinha que se apoiar nos fatores reais de poder, do contrário não passaria de uma folha de papel.
e tendo (A) poder, riqueza e certaz atribuições na sociedade e (B) tendo o oposto, segundo ssua concepção este fato nao poderia ser mudado.
então se uma sociedade é injusta e má por ssua propria natureza de fatos, e nen a constituição pode mudar isso, o que fazer então? se nao mudar pela propria constituição, que no seu proprio sentido etmologico significa Organização ou formação ou simplismente lei fundamental que regula os direitos, deveres e garantias dos cidadãos em relação ao Estado e a organização política de um país? ass: wellyngton sousa oliveira, aluno fcat, Noite.

Anônimo disse...

Wellyngton, prazer ter notícias suas no meio dessas longas férias, ainda mais vendo-o comentar uma postagem minha aqui do blog. Bom, respondendo a você, o Lassale acredita que é, sim, possível mudar a situação presente, mas essa mudança vai ocorrer mediante ação política, e não pela constituição. O que ele não queria era que a constituição fosse uma espécie de "promessa" solta no ar, uma imagem irreal da sociedade, porque aí, segundo ele, ela não teria força real, seria descumprida, perderia legitimidade e respeito e, no fim das contas, não se teria mais constituição, apenas uma "folha de papel" com capa e nome pomposo, que na prática nada regula. Abraço!