quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Neoconstitucionalismo e os Novos Papeis das Cortes Constitucionais

Esses são os slides que usei no curso "O Neoconstitucionalismo e o Novo Papel das Cortes Constitucionais: Comparação entre EUA e Brasil", que ministrei para alunos de Direito da Faculdade de Castanhal (FCAT) no último dia 5/11/2011. Podem fazer o download, ver e usar à vontade, apenas com o cuidado de citar o autor, claro.

Como se verá nos slides, no curso falei sobre como as Cortes Constitucionais do Brasil e dos EUA foram progressivamente ampliando seus próprios poderes por meio de uma série de decisões paradigmáticas, das quais selecionei, para falar em detalhes, no caso americano: Marbury v. Madison (1803 - criação do controle judicial de constitucionalidade), Brown v. Board of Education of Topeka (1954 - declaração de inconstitucionalidade da segregação racial), New York Times Co. v. Sullivan (1964 - novos parâmetros para a proteção da liberdade de expressão), Griswold v. Connecticut (1965 - reconhecimento do direito a intimidade) e Roe v. Wade (1973 - declaração de inconstitucionalidade de leis que proíbem o aborto nos primeiros dois trimestres da gravidez) e, no caso brasileiro, o HC 82.424 (2003 - caso Sigfried Ellwanger), MI 670 (2007 - reconhecimento do direito de greve dos servidores públicos), STA 278-6 (2008 - direito a medicamento não previsto na lista do SUS), ADI 3510 (2008 - constitucionalidade do Art. 3º da Lei de Biossegurança, autorizando experimentos com células-tronco em embriões inviáveis congelados há mais de 3 anos) e ADI 4277 (reconhecimento da união homoafetiva).

Espero que gostem.

A Decisão da ADI 3510 Não Foi Ativismo Judicial: Uma Abordagem a partir de Dworkin

Introdução

Nesta postagem tentarei mostrar que, à luz da teoria do Direito e da Interpretação Jurídica de Ronald Dworkin, a decisão que o STF tomou na ADI 3510 (constitucionalidade da autorização de experimentos com células-tronco embrionárias conforme o Art. 3º da Lei de Biossegurança) pode ser caracterizada, não como peça de ativismo judicial, mas como simples exemplo de exercício regular da jurisdição. Para isso, farei primeiro uma brevíssima distinção entre ativismo judicial e exercício regular da jurisdição, mostrando que a distinção depende da teoria do Direito que se tenha como pano de fundo (item 1); em seguida, listarei, de modo resumido, os pontos principais da teoria de Dworkin acerca do Direito e da Interpretação Jurídica (item 2); depois, examinarei a decisão da ADI 3510 à luz da teoria de Dworkin (item 3), divindo-a em duas rodadas de interpretação (subitens 3.1 e 3.2); por fim, concluirei que, interpretada da maneira que proponho à luz da teoria de Dworkin, a decisão se caracteriza perfeitamente como exercício regular da jurisdição, e não como ativismo judicial.

1) Ativismo Judicial e Exercício Regular da Jurisdição

Em primeiro lugar, temos que diferenciar entre juízes legislando (ativismo judicial) e juízes aplicando o direito a partir de uma interpretação mais completa e qualificada (o que não é ativismo judicial, é simples exercício regular, ainda que mais qualificado, da jurisdição, portanto, do poder legítimo que cabe ao judiciário). Tudo depende da concepção que você tem do Direito. Se você considera que o Direito é apenas um sistema de regras muito estritas, moralmente neutras, que devem ser aplicadas de maneira mais ou menos mecânica por um judiciário predominantemente passivo, então, quase tudo que se modificou na forma de interpretar e aplicar o Direito nos últimos trinta anos vai se enquadrar como ativismo judicial. Mas veja: o conceito de ativismo judicial só precisa ser assim tão amplo porque essa pessoa tem uma concepção muito restrita do que é a jurisdição regular. Se, ao contrário, considerarmos que o Direito, à maneira, por exemplo, de Dworkin, é um sistema de regras e princípios, sendo as primeiras passíveis de reinterpretação em vista de seus propósitos sociais e de seus sentidos de justiça e os últimos abertos e abrangentes, capazes de dar orientações de moralidade política à atividade jurisdicional, então, boa parte do que se modificou nos referidos últimos trinta anos não vai mais precisar ser enquadrado como ativismo judicial, porque estará no âmbito do exercício regular, embora mais amplo e qualificado, da própria jurisdição. Aqui novamente: o conceito de ativismo judicial se tornará bem mais restrito, porque a concepção do que é a jurisdição regular se tornou mais ampla. A conclusão a que quero chegar com isso é a seguinte: Antes de saber o que é ou não ativismo judicial (o judiciário numa função anômala), temos que saber o que é jurisdição regular (o judiciário na função normal), o que sempre depende de com qual concepção de ordenamento jurídico, de interpretação e aplicação do Direito e de exercício da jurisdição estamos lidando. É impossível para um positivista como Kelsen, Hart ou Bobbio e para um interpretativista como Dworkin terem a mesma concepção do que se enquadra como ativismo judicial, uma vez que eles não têm a mesma concepção sobre o que é o direito, sobre como se interpreta e se aplica o direito e sobre o que é o exercício regular da jurisdição. Ou seja: não é possível ter uma concepção puramente fática e teoreticamente neutra (isto é, independente da teoria do direito com que se trabalha) do ativismo judicial.

2) As Teses da Teoria de Dworkin


Feita esta observação, partamos de Dworkin (a teoria do direito que me parece hoje a mais ampla e adequada). Para Dworkin, uma decisão como a da ADI 3510 não teria sido "ativismo judicial", e sim simples exercício regular da jurisdição. Vejamos como. Primeiro, as teses da teoria de Dworkin:
 
- O sistema jurídico está comprometido com uma norma fundamental de justiça: a norma do igual respeito (que preserva a liberdade de cada um) e da igual consideração (que promove a igualdade entre todos);
 
- O modo como o sistema jurídico realiza e mantém esse compromisso se chama integridade: a integridade é a característica de uma comunidade política pela qual se espera que ela trate casos iguais de maneira igual e ao mesmo tempo realize para cada um deles sua concepção mais desenvolvida de justiça;
 
- O sistema jurídico é um sistema formado de regras e princípios: regras são normas que se aplicam segundo a lógica do tudo ou nada (um caso ou está regulado por certa regra ou não está; em caso de conflito entre regras, ou uma excepciona a outra ou uma exclui a outra do ordenamento jurídico), enquanto princípios se aplicam segundo a lógica do mais e menos (um caso pode estar mais ou menos relacionado a certo princípio; em caso de conflito entre princípios, um toma precedência sobre o outro naquele caso em particular, mas não o exclui do ordenamento jurídico); os princípios estão vinculados a uma ideia de justiça, a saber, à norma fundamental do igual respeito e da igual consideração; o uso dos princípios na interpretação e na aplicação do direito é o que permite a uma comunidade política a manutenção da sua integridade;
 
- Os princípios não são uma lista exaustiva: é sempre possível descobrir novos princípios; mais ainda: eles não são apenas aquelas normas listadas explicitamente como princípios no ordenamento jurídico; pelo contrário, dado o papel reconstrutivo e hermenêutico que os princípios desempenham na teoria de Dworkin, eles podem ser entidas teóricas criadas pelo intérprete no momento da interpretação, desde que apresentam "ajuste institucional" e "apelo moral" (explico esses dois requisitos no item abaixo); portanto, pode ser um princípio a norma "é livre a expressão do pensamento e vedada a censura", mas pode ser também, como em Brown v. Board, o critério "raça é um critério suspeito de seleção entre seres humanos, dada sua histórica vinculação com o preconceito";
 
- Além disso, os princípios encarnam direitos e têm o status de "trunfos" dos indivíduos contra metas socialmente relevantes, ou seja, os princípios são aquilo que garante que cada pessoa será tratada segundo a norma fundamental de igual respeito e igual consideração mesmo quando houver fins sociais relevantes (desenvolvimento econômico, segurança nacional, erradicação da miséria, combate à discriminação etc.) que recomendariam a violação do direito daquela pessoa; ou seja, na hora em que os fins coletivos ameaçarem o igual respeito e a igual consideração por certa pessoa, esta pessoa pode "sacar" o seu direito como um "trunfo" que permite que ela se proteja dessa ameaça; nisso se baseia a distinção dworkiniana entre argumentos de princípio (fundados em pretensões de justiça e que configuram direitos) e argumentos de política (fundados em metas sociais relevantes e que não configuram direitos - pelo contrário, configuram aquilo contra o que os direitos protegem os indivíduos); por isso, para Dworkin, o judiciário só pode decidir com base em argumentos de princípio, nunca em argumentos de política;
 
- Na interpretação do direito, o jurista deve proceder por meio do seguinte esquema teórico: (a) dado um histórico de decisões legislativas e judiciais do passado, deve-se encontrar um princípio ou conjunto de princípios capaz de explicar as decisões tomadas até aqui (esse é o requisito de ajuste institucional da interpretação); (b) se o histórico de decisões é explicável por mais que um princípio ou por mais que um conjunto de princípios, então os princípios ou conjuntos de princípios em questão gozam do mesmo ajuste institucional, sendo necessário decidir entre eles por outro critério, a saber, qual deles realiza a uma concepção moralmente mais atraente (esse é o requisito de apelo moral); deve-se atentar para o fato de que o requisito do apelo moral não se refere à moralidade da convicção íntima de cada juiz, mas a uma moraidade pública realiza nas instituições, em última instância, à melhor versão da norma fundamental do igual respeito e da igual consideração;
 
- As decisões, portanto, têm que manter entre si uma coerência; mas essa coerência não é uma coerência de resultados, do tipo que prescreve que as decisões posteriores têm que ser iguais às decisões anteriores para o mesmo tipo de caso (pois, nesse caso, a decisão de Brown v. Board teria que ser a mesma de Plessy. Ferguson); essa coerência, ao contrário, tem que ser uma coerência de princípio, do tipo que prescreve que uma decisão posterior têm que recorrer aos mesmos princípios a que as decisões anteriores para os mesmos casos recorreram (coisa que Brown v. Board faz em relação a Plessy v. Ferguson, pois ambos os casos recorrem ao princípio da igualdade de tratamento, insculpido na 14ª Emenda), mesmo que, agora, esses princípios estejam reinterpretados à luz de uma concepção mais atraente de sua relação com a norma fundamental do igual respeito e da igual consideração (exatamente o que ocorre em Brown v. Board, pois, agora, o igual tratamento é visto como uma igualdade que exclui critérios de desigualamento baseados no preconceito, o que é exatamente o caso do critério raça no caso das escolas públicas sulistas).
 
3) Exame da Decisão da ADI 3510 à luz da Teoria de Dworkin

Agora, de posse dessas teses, voltemos nossa atenção para a decisão da ADI 3510. Vou tomar aqui o exemplo da ADI 3510 para mostrar como uma decisão como essa pode, à luz da teoria de Dworkin, ser mostrada como simples exercício regular da jurisdição (isto é, da jurisdição tal como Dworkin a concebe), e não como peça de "ativismo judicial".

3.1) 1ª Rodada de Interpretação: Os Embriões São Seres Humanos e Têm um Direito Absolutamente Inviolável à Vida?

A ADI 3510 tinha que decidir se o status de ser humano se aplicava aos embriões inviáveis congelados a mais de 3 anos, se isso lhes dava direito à vida e se esse direito justificava que o art. 3º da Lei de Biossegurança fosse declarado inconstitucional;

Ora, seguindo o critério de Dworkin, qual seria o "histórico de decisões" com o qual teríamos que lidar para este caso? Vamos separar os elementos desse histórico, usando a letra H para "histórico":

- H1: a CF atribui direitos fundamentais a todo ser humano;

- H2: o CC diz que põe a salvo os direitos do nascituro;

- H3: o CP proíbe o aborto, salvo em duas hipóteses restritas;

- H4: o CC faz claramente uma distinção entre o status do titular de direitos antes e depois do nascimento;

- H5: a CF prevê a possibilidade de uma pena de morte, ainda que seja no regime de exceção de um Estado de guerra declarada;

- H6: o CP, recepcionado pela CF, contém as hipóteses da legítima defesa, do estado de necessidade, do aborto necessário e do aborto caridoso, todos eles sendo exceções à proteção à vida.

Sendo assim, poderíamos, se quiséssemos interpretar a decisão do STF a partir da teoria de Dworkin, dizer que o STF tinha diante de si os seguintes candidatos a princípios explicativos desse histórico de decisões (usando a letra P para "princípio"):

- P1: embriões são seres humanos e têm um direito à vida absolutamente inviolável;

- P2: embriões são seres humanos e têm um direito à vida relativamente inviolável;

- P3: embriões são seres humanos e não têm, contudo, nenhum direito à vida;

- P4: embriões não são seres humanos e, portanto, não têm direito à vida.

Submetendo os candidatos de P1 a P4 ao primeiro critério de decisão (o ajuste institucional), teríamos que ver qual deles é capaz de explicar mais e melhor o histórico de decisões do passado de H1 a H6. Vejamos, então:

- P1 explica bem, por um lado, H1, H2 e H3 (porque reconhece status humano e direito à vida aos embriões), mas não explica bem H4, H5, H6 (porque considera o direito à vida absolutamente inviolável): logo, tem ajuste institucional mediano;

- P2 explica bem tanto H1, H2 e H3 (porque reconhece status humano e direito à vida aos embriões), quanto, do outro lado, H4, H5 e H6 (porque considerada o direito à vida apenas relativamente inviolável): logo, tem total ajuste institucional;

- P3 explica bem H4, torna H5 irrelevante para o caso, explica as hipóteses de aborto em H6, explica bem H1, mas não explica bem H2 e H3: logo, tem ajuste institucional mediano;

- P4 explica bem apenas as hipóteses de aborto de H6, torna irrelevante H5 e não explica bem nenhum dos outros itens H1, H2, H3 e H4: logo, tem baixíssimo ajuste institucional;

Em Dworkin, esse primeiro estágio já nos revelaria que apenas P2 ("embriões são seres humanos e têm um direito à vida relativamente inviolável") tem ajuste institucional total. Sendo assim, P2 deveria ser o princípio escolhido.

Uma vez que P2 é o princípio à luz do qual a ADI 3510 teria que ser decidida, o principal fundamento dos que pediram a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º da Lei de Biossegurança, a saber, que embriões são seres humanos e seu direito à vida é absolutamente inviolável (uma alegação que, sendo coincidente com o já testado princípio P1, já se viu que não tem o ajuste institucional necessário), teria que ser rejeitado.

3.2) 2ª Rodada de Interpretação: O Direito Relativamente Inviolável à Vida dos Embriões Pode Ser Violado para Autorizar Pesquisas com Células-Tronco Embrionárias?

Restaria saber se, sendo o direito à vida que P2 assegura aos embriões apenas relativamente inviolável, se justificaria violá-lo em vista dos possíveis benefícios da pesquisa científica com células-tronco embrionárias, as quais, no atual estado da ciência, prometem a cura ou mitigação de doenças gravíssimas que atualmente atingem milhões de seres humanos e não têm qualquer tratamento eficaz. Isso inaugura uma segunda rodada de interpretação.

O histórico de decisões do passado relevantes para essa nova rodada de interpretação (ou seja, as decisões do passado que se referem à possibilidade de violação do direito à vida) agora é o seguinte:

- H1: a CF prevê a possibilidade de pena de morte (de adultos), em caso de guerra declarada;

- H2: o CP permite violar o direito à vida (de adultos) nos casos de legítima defesa e estado de necessidade;

- H3: o CP permite violar o direito à vida (de fetos) no caso de aborto necessário

- H4: o CP permite violar o direito à vida (de fetos) no caso de aborto caridoso;

O rol de candidatos a princípios neste nova rodada seria:

- P1: o direito à vida só pode ser violado para salvar outra vida de modo imediato e real;

- P2: o direito à vida só pode ser violado para salvar outra vida, mesmo que de modo mediato e potencial;

- P3: o direito à vida pode ser violado para salvar a vida ou outro direito relevante;

- P4: o direito à vida pode ser violado para realizar qualquer finalidade (sendo um direito ou não) socialmente relevante;

- Submetendo agora esses candidatos a princípios explicativos ao teste do ajuste institucional:

- P1: explica H2 (parcialmente) e H3, não explica H1 e H4: ajuste institucional mediano;

- P2: explica H2 (parcialmente) e H3, não explica H1 e H4: ajuste institucional mediano;

(Obs: P1 e P2 explicam H2 apenas parcialmente porque só explicam a violação do direito à vida no caso da legítima defesa quando o direito que estava sendo ameaçado pelo agressor também for a vida; casos em que o agredido estava se defendendo, por exemplo, de estupro, de lesão corporal grave ou de roubo não poderiam ser explicados por P1 e P2; agora, continuando:)

- P3: explica H2 (integralmente), H3 e H4, e explica H1 caso a pena de morte seja para punir violação de direito: ajuste institucional alto ou (dependendo do caso de H1) total;

- P4: explica H2, H3 e H4, e explica H1 inclusive se a pena de morte for contra deserção, traição, revelação de segredo militar, espionagem etc.: ajuste institucional total.

Aparentemente, ter-se-ia que optar por P4. Contudo, P4 viola a ideia dworkiniana de direitos como trunfos e a distinção entre argumentos de princípio e de política (ver explicação lá em cima). Sendo assim, P4 não pode ser usado como princípio e teríamos que recorrer ao princípio que, à exceção de P4, tem melhor ajuste institucional, ou seja, P3.

Usando P3 ("o direito à vida pode ser violado para salvar a vida ou outro direito relevante") vemos que um outro argumento em favor da possível inconstitucionalidade do Art. 3º da Lei de Biossegurança, a saber, o argumento de que o direito à vida só pode ser violado se for para salvar outra vida de modo imediato e real (o qual, coincidindo com o conteúdo do já testado princípio P1, vimos que tem ajuste institucional menor do que P3), também teria que ser descartado. Na medida em que os possíveis resultados futuros das pesquisas com células-tronco embrionárias podem vir a salvar vidas (embora de modo mediato e potencial) ou melhorar a condição de saúde (outro direito relevante) de muitas outras pessoas, a violação ao direito à vida dos embriões inviáveis congelados há mais de 3 anos é perfeitamente justificada; logo, não deve ser declarada inconstitucional;

Por fim, poder-se-ia perguntar: Porém, se, nesta segunda rodada de interpretação, P3 ("o direito à vida pode ser violado para salvar a vida ou outro direito relevante") é o princípio que melhor explica as hipóteses autorizadas de violação do direito à vida no histórico de decisões anteriores, a possibilidade dos experimentos para pesquisas com células-tronco embrionárias não deveria, então, ser estendida aos embriões em geral, em vez de apenas aos embriões inviáveis congelados há mais de três anos? Pois não há nada em P3 que obrigue a uma consideração sobre viabilidade ou não dos embriões nem sobre tempo de congelamento. Por que, então, manter essa restrição, em vez de autorizar aqueles experimentos com todos os embriões, viáveis ou não, congelados a mais ou a menos que três anos? A resposta é que, uma vez que a questão examinada pelo STF foi sobre a constitucionalidade do Art. 3º do modo como ele está formulado, declará-lo como constitucional está dentro do âmbito da decisão em questão e não viola a separação de poderes, ao passo que estendê-lo para além dos limites de sua formulação original configuraria legislação positiva pelo judiciário e violaria a separação de poderes. Daí poderíamos dizer: no Art. 3º da Lei de Biossegurança, a parte (1), relativa à violação do direito à vida de embriões em nome de possíveis benefícios à vida e à saúde a partir de experimentos com células-tronco embrionárias, se justifica com base em P3, enquanto a parte (2), relativa à restrição de que tais embriões sejam apenas os inviáveis e congelados há mais que três anos, se justifica com base noutros dois princípios, a saber: o da soberania popular (exigindo que se respeite a decisão do legislativo eleito, quando esta for constitucional) e o da separação dos poderes (exigindo que o judiciário não eleito não legisle positivamente).

Conclusão

Creio que, explicada dessa forma, a decisão da ADI 3510 possa ser considerada simplesmente um exemplo de exercício regular da jurisdição (desde que esta seja concebida no modelo de Dworkin), e não uma peça de ativismo judicial.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Inconstitucionalidade da decisão da ADI 3510 por usurpação da soberania popular

Penso que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 3510, que considerou constitucional o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05), permitindo, assim, a utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, é inconstitucional.

Não que eu defenda a intangibilidade do direito à vida de embriões inviáveis congelados há mais que três anos, posição que, aliás, me parece absurda o bastante para só receber adesão de fanáticos religiosos.

Chego àquela conclusão porque a declaração de inconstitucionalidade de uma lei em confronto com texto da constituição, em sede de controle concentrado e abstrato (Art. 102, I, a, CF), pressupõe, para não extrapolar os limites de legitimidade do poder judiciário, num Estado democrático de direito (Art. 1º, caput, CF) regido pelo princípio republicano da soberania popular (Art. 1º, parágrafo único, CF), que o texto com que se confronta a lei em questão não contenha conceitos cujo sentido seja tão incerto e disputado que qualquer tentativa de concretizá-los e torná-los consensuais na instância judicial desborde inevitavelmente em usurpação do exercício da soberania popular.

E, a meu ver, é exatamente isso que ocorreu no caso em questão, uma vez que estava em jogo o sentido e a extensão do direito à vida (Art. 5º, caput, CF, c/c Art. 2º, in fine, CC) matéria que desperta fortes controvérsias entre distintos setores da sociedade brasileira, de modo que, quer o STF tivesse decidido que o direito à vida se estende ao embrião humano produzido por fertilização in vitro, quer tivesse decidido que não se estende, em ambos os casos teria tomado uma decisão que somente a própria sociedade poderia tomar.

E deveria tomar, de preferência de modo direto, por via de referendo (Art. 14, II, CF, e Art. 2º, §2º, da Lei nº 9.709/98) ao dispositivo em questão, oportunidade em que, ao longo de campanha em rádio e TV, os distintos posicionamentos a respeito do tema poderiam ser adequadamente expostos e debatidos a ponto de formar uma decisão popular informada e legítima para essa controvérsia.

Parece-me que, para permanecer no estrito limite de sua competência judicial, o STF deveria ter suspendido liminarmente a vigência do Art. 5º da Lei nº 11.105/05 e emitido, ex officio, ao Congresso Nacional, "mandado" (semelhante àquele que parte da doutrina considerou por bom tempo ser possível no caso do mandado de injunção) de apreciação de proposta de referendo, para que este, no exercício de sua competência exclusiva (Art. 49, XV, CF), o autorizasse.

(Tal "mandado" violaria o Art. 3º da Lei nº 9.709/98, que estabelece que o referendo deve ser proposto por um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, o que, a meu ver, poderia ser superado por uma hermenêutica constitucional que interpretasse o referido dispositivo de modo a ajustar-se melhor ao Art. 1º, parágrafo único, da CF, vendo a convocação do referendo, de que fala o artigo, como um dever do Poder Legislativo, o qual, se não observado, pode ser objeto de controle judiciário, sob pena de insegurança ao Estado democrático de direito, justificando-se também assim sua emissão ex officio, e de modo a relativizar, em nome da razoabilidade, o prazo de trinta dias, a contar da promulgação de lei ou adoção de medida administrativa, de que fala o Art. 11 da mesma Lei nº 9.709/98).

Na minha opinião, a decisão do STF no caso em questão (com a qual, deixe-se claro, até concordo) só teria legitimidade democrática se resultasse de manifestação popular por meio de referendo.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pospositivismo?

Diz-se que o Direito vive hoje uma era pospositivista. Quem o diz geralmente caracteriza o positivismo jurídico como uma teoria que concebe o direito como um conjunto de regras prévias emanadas do poder legislativo e desvinculadas de qualquer senso moral ou político, às quais o juiz se limitaria a relacionar os casos concretos que julgasse, a fim de extrair, por subsunção, a solução, única e certa, já preconfigurada para ele no sistema jurídico. Para essa mesma pessoa, como o Direito hoje passou a valorizar, além das regras, os princípios; passou a levar em conta o peso moral e político das normas; passou a ver o papel do juiz como interpretativo e criativo; e passou a admitir a possibilidade de várias soluções para o mesmo caso, restaria diagnosticar que o tempo do positivismo jurídico teria passado. É preciso, contudo, ver que essa caracterização do positivismo jurídico é polêmica, não no sentido de ser contestada e contestável (embora o seja), mas no sentido de servir apenas ao propósito de crítica ao juspositivismo, acentuando nele ou adicionando a ele elementos que não eram centrais em sua formulação original e que apenas ganharam destaque para fazer dele um conveniente pano de fundo de contraste com as teorias mais recentes.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Direito à Vida - Aborto

Antes de tudo, posicionar-me: Sou favorável ao aborto, até o terceiro mês da gravidez, para todos os casos e sem necessidade de justificação do motivo por parte da mãe. Contudo, nessa postagem não vou defender minha posição, e sim mostrar qual o estado do debate atual sobre a questão, evidenciando argumentos das posições liberal, conservadora e moderada.

Posição Liberal: Aborto liberado para qualquer caso, em qualquer fase da gravidez.

Linhas argumentativas:

1. Corpo da mulher como propriedade sua e feto como parte do corpo. É a posição libertária. O corpo da mãe é visto como sua propriedade, e o feto é visto ou como um elemento dessa propriedade, da qual ela pode dispor livremente, ou como um instruso nessa propriedade, que a mãe tem direito de expulsar.

2. Feto como não-pessoa. O fato de ser consciente, sensível à dor, racional, comunicativo etc. é visto como essencial para que algo seja classificado como uma pessoa e seja merecedor de respeito na comunidade moral. O feto, não tendo qualquer dessas características, falha em ser uma pessoa e, portanto, nenhum direito está sendo violado quando esse feto é morto.

Posição Conservadora: Aborto proibido para qualquer caso, em qualquer fase da gravidez.

Linhas argumentativas:

1. Feto como individualidade humana e pessoa moral. É a posição da Igreja Católica (posição que, é bom enfatizar, hoje em dia se tornou independente de considerações sobre o momento da infusão da alma no corpo vivo). Considera-se que, formado o zigoto, dotado de individualidade genética própria, já se tem um ser humano único, cuja vida é sagrada e não pode ser sacrificada em caso algum (nem mesmo para salvar a vida da mãe, segundo argumentam, pois não pode haver "legítima defesa" a não ser contra quem perpetra injusta agressão, caso ao qual o do feto não pode ser equiparado).

2. Eliminação da expectativa de vida humana. É um argumento laico em contrário ao aborto. Argumenta-se que não é possível tirar de um ser humano o que ele já viveu, mas apenas o que ele ainda está por viver. Sendo assim, todo assassinato é, de alguma forma, uma eliminação da expectativa de vida humana por ser vivida no futuro. Ora, nesse sentido, não há diferença entre a situação do feto e a situação de um ser humano adulto: ambos têm, quanto às expectativas de viver, expectativa de uma vida humana. Não haveria, portanto, diferença entre aborto e assassinato.

Posição Moderada: Aborto permitido até certo ponto da gravidez.

Linhas argumentativas:

1. Semelhança à pessoa. Conforme o feto se desenvolve, vai tomando feições e desenvolvendo capacidades que o tornam cada vez mais semelhante a uma pessoa, motivo por que o tornam também um ser cada vez mais merecedor do mesmo tipo de respeito que se deve a qualquer pessoa. Por isso, o aborto seria permitido, desde que nos primeiros meses de gravidez, ali quando se apresenta como pouco mais que um método contraceptivo entre outros, mas não nas fases finais, quando mais se assemelha a um infanticídio.

2. Objeto de cuidado, respeito e culpa. Acredita que não basta ter uma comunidade moral em que os seres que são pessoas plenas não sejam inocentemente levados à morte, mas é preciso também que os seres que não se encontram na condição de pessoa plena, mas que inspiram, por alguma razão, nossa especial consideração e respeito, sejam equiparados a pessoas para fins de tratamento. Assim como uma verdadeira comunidade moral atribui direitos a idosos, loucos e comatosos, uma verdadeira comunidade moral atribui direitos ao feto desenvolvido, não permitindo sua morte senão nos primeiros momentos da gravidez, quando ainda não inspira em nós aquela mesma consideração.

(Para a composição dessa postagem, foi especialmente importante a leitura do verbete "Aborto" no Dicionário de Ética e Filosofia Moral, originalmente produzido por professores franceses e editado pela PUF, traduzido e editado em português pela Unisinos e que recomendo a todos que querem ter ao mesmo tempo uma excelente perspectiva histórica e um belo quadro atual da discussão sobre uma série de conceitos, escolas e idéias chave da Filosofia Moral contemporânea.)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

RESUMO SOBRE OBJETIVOS BÁSICOS DA RFB

Objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária: reconhece que a sociedade brasileira é marcada pela opressão do Estado, do mercado, da carência e da violência, pelas injustiças sociais e regionais e pelo sentido de individualismo e de indiferença pelos problemas de outros indivíduos ou grupos, mas se compromete com a construção de uma sociedade que contenha, na maior medida possível, aquelas formas de opressão; que erradique ou reduza, na maior medida possível, aquelas injustiças; e que transforme, na maior medida possível, aquela indiferença em solidariedade cultural, social e econômica entre indivíduo e grupos.

Objetivo de garantia do desenvolvimento nacional: reconhece o Brasil como um país subdesenvolvido (ou em desenvolvimento) nos aspectos econômico, científico, social, cultural, ambiental etc., mas se compromete com planos e ações que garantam o desenvolvimento nacional em todos aqueles aspectos e dimensões.

Objetivo de erradicação da pobreza e da marginalização: reconhece o Brasil como uma sociedade em que amplas faixas da população estão em situação de pobreza (carência e escassez, e não só em sentido econômico) e de marginalização (exclusão e impossibilidade de pleno acesso a bens e serviços essenciais e de pleno desenvolvimento de sua personalidade, novamente não só em sentido econômico), mas se compromete com a erradicação ou mitigação de ambas, na maior medida possível.

Objetivo de redução das desigualdades sociais e regionais: reconhece que o Brasil possui profundas e extremas desigualdades entre as rendas, os recursos, os bens e os serviços disponíveis a certos grupos sociais e apenas parcialmente disponíveis ou mesmo indisponíveis para outros (sendo aqui importante destacar as desigualdades entre ricos e pobres, mas também entre homens e mulheres, entre brancos, mestiços, negros e índios, entre os possuidores de distintos níveis de instrução educacional, entre os fiéis de distintas religiões etc.), bem como profundas desigualdades entre as rendas, os recursos, os bens e os serviços disponíveis em certas regiões e apenas parcialmente disponíveis ou mesmo indisponíveis em outras (sendo aqui importante destacar as desigualdades entre norte e sul do país, mas também entre cidade e campo, entre litoral e sertão, entre capitais e interior dos estados, entre centro e periferia nas grandes cidades etc.), mas se compromete com planos e ações tendentes a reduzir, na maior medida possível, essas desigualdades, o que frequentemente implicará numa atenção e mesmo num tratamento especial dispensado aos grupos e regiões desfavorecidos.

Objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações: fixa o compromisso de, nos planos e ações do Estado, visar a resultados que possam ser igualmente bons para todas as regiões, todos os grupos e todos os indivíduos (mesmo se favorecerem a alguns mais que a outros) e de não apenas não reforçar preconceitos e praticar discriminações, mas combatê-los, seja preventiva, seja repressivamente.

RESUMO SOBRE FUNDAMENTOS DA RFB

Princípio republicano: fixa o Brasil como uma república e consagra a exigência de que os cargos públicos políticos sejam exercidos segundo os requisitos de responsabilidade, eletividade e temporariedade.

Princípio federativo: fixa o Brasil como uma federação (com cláusula de indissociabilidade, que exclui a hipótese de secessão, sujeita à intervenção federal) e consagra a exigência de que a União e os Estados tenham órgãos próprios e independentes para os poderes executivo, legislativo e judiciário, tenham serviços e competências próprias e independentes e tenham receitas e orçamentos próprios e independentes.

Princípio do Estado democrático de direito: fixa o Brasil como um Estado democrático de direito, o que significa associar as exigências de soberania popular do Estado democrático com as exigências de limitação do poder estatal do Estado de direito, adicionando ainda a exigência de que o Estado tenha um papel ativo na promoção de uma sociedade livre, justa e solidária e na realização dos direitos individuais e coletivos.

Princípio da soberania: fixa o Brasil como um Estado soberano, o que quer dizer que está acima de todo outro poder ao nível interno (superioridade interna), e não está abaixo de nenhum outro poder ao nível externo (independência externa).

Princípio da cidadania: fixa, como complemento da soberania do Estado, a cidadania do indivíduo, enunciada aqui não apenas no sentido de posse de direitos políticos (de votar e ser votado), mas também como titularidade da soberania popular e de direitos fundamentais (cidadania como direito a ter direitos, Hannah Arendt).

Princípio da dignidade da pessoa humana: fixa que toda pessoa será tratada com o respeito devido a um ser humano dotado de razão, livre-arbítrio e autonomia, de modo que jamais seja instrumentalizado como coisa para os fins do Estado ou de outros indivíduos (Immanuel Kant) nem seja reduzido a uma situação tal de violação aos seus direitos básicos, individuais ou sociais, que seja ofendido na sua condição de ser humano.

Princípio dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa: fixa que, no que se refere aos assuntos econômico-sociais, o Brasil nem é um Estado socialista de economia planificada (o que ofenderia o valor social da livre iniciativa, que deixaria de existir ou seria severamente restringida), nem é um Estado liberal de mercado não regulado (o que ofenderia o valor social do trabalho, que se tornaria simples mercadoria como outra qualquer e estaria passível de ser superexplorado), mas é, sim, um Estado social (welfare
state), que intervém em setores econômicos estratégicos, para garantir o desenvolvimento e evitar crises sistêmicas, e em setores sociais, para evitar a desassistência e a superexploração e combater a pobreza, a marginalização e a desigualdade, mantendo, assim, certo equilíbrio entre liberalismo e socialismo.

Princípio do pluralismo político: fixa que a democracia brasileira deve abrigar não só uma pluralidade de partidos políticos (pluripartidarismo), mas também uma pluralidade de grupos, de interesses e de vozes que possa participar da formação da vontade estatal e ser levada em conta nos planos e ações do Estado (o que exclui a possibilidade de que um grupo ou partido se aproprie de todos os cargos e de todas as esferas de decisão e de administração em qualquer setor da política nacional, bem como que certos grupos ou partidos sejam sistematicamente ignorados, excluídos, explorados ou discriminados na formação da vontade política).

Princípio da separação dos poderes: fixa que o legislativo, o executivo e o judiciário são funções independentes e harmônicas entre si, sendo o requisito de independência uma exigência de que não exista interferência de uma delas nas decisões que são próprias da outra (embora deva haver fiscalização e controle de uma sobre a outra) e sendo o requisito de harmonia uma exigência de que as atividades de uma não rompam continuidade nem entrem em conflito com as atividades da outra.

terça-feira, 31 de março de 2009

Princípio Republicano: a Temporariedade

Dedicado às turmas 3BDIN1 e 3BDIN2, da FCAT

O chamado princípio republicano, estampado no caput do Art. 1º da CF/88, traz consigo uma tripla exigência: responsabilidade, eletividade e temporariedade dos cargos públicos políticos. Tais requisitos não são unívocos no seu sentido, porque podem ser vistos segundo distintas perspectivas políticas. Hoje comentarei sobre o requisito da temporariedade, em torno do qual passei recentemente uma atividade para minhas turmas da noite de Direito Constitucinal II, na Faculdade de Castanhal. Espero que seja útil também, é claro, para meus outros visitadores.

Temporariedade significa que os cargos públicos políticos têm mandatos temporários, e não vitalícios. Assim, tais mandatos têm marco inicial numa eleição e marco final na eleição seguinte. Os motivos clássicos que a teoria democrática fornece para essa exigência são dois: fornecer uma instância de controle democrático posterior sobre o modo de exercício do mandato político e fomentar a variabilidade das pessoas e grupos que exercem o poder político. Vejamos cada um dos dois argumentos.

Argumento do controle democrático posterior: Esse argumento se apóia na teoria do controle democrático, que é parte da chamada teoria das elites (uma teoria que faz parte do modelo liberal de democracia). Segundo a teoria das elites, numa democracia de massas não é possível que todos governem, de modo que quem governará de fato será uma elite (no sentido de ser um pequeno grupo que ocupa os cargos importantes e detém o poder político, e não no sentido de ser uma elite econômica, cultural, racial etc.), a qual, porque estará interessada em manter-se no poder, assumirá certos compromissos com a massa do eleitorado (do contrário, não será eleita uma primeira vez) e cumprirá pelo menos parte desses compromissos durante o seu mandato (do contrário, não será eleita novamente). Tomando essa teoria como verdadeira, a temporariedade viria como uma modalidade posterior de controle democrático: enquanto a escolha dos candidatos cujos compromissos de campanha estão em maior conformidade com os interesses do eleitorado seria um primeiro ato de controle democrático, anterior ao mandato, a temporariedade do mandato asseguraria que em breve o candidato seria exposto a uma nova eleição, isto é, a um segundo controle democrático, posterior ao mandato, criando para ele, assim, a perspectiva constante de que será reavaliado e de que precisará cumprir no menor tempo possível e na maior medida possível com seus compromissos de campanha. Assim, para que o detentor de um cargo público político fosse submetido a esse controle democrático posterior, é preciso apenas que seu cargo seja temporário e que ele seja submetido a uma nova eleição.

Argumento da variabilidade do titular do poder político: Segundo uma antiga lição do republicanismo, numa democracia saudável existe revesamento ou rotatividade de quem são as pessoas encarregadas do exercício do poder político. Tal revesamento ou rotatividade deveria estar presente até mesmo quando o mandato político é bem exercido, porque não se trata de variar para mudar o que vai mal, e sim de variar para manter o equilíbrio e o pluralismo com que se exerce o poder político. Quando uma mesma pessoa ou um mesmo grupo fica no poder por mais tempo que um mandato, existe uma cristalização das configurações políticas, favorecem-se as mesmas políticas, os mesmos interesses, praticam-se os mesmos procedimentos, as mesmas alianças, existe identificação do cargo com a pessoa (personalismo do cargo) ou com o partido (partidarização do cargo), o que acirra os ânimos dos grupos e interesses desatendidos, gera rivalidades e conflitos e faz nascer um sentimento geral de insatisfação e de injustiça. Assim, para evitar todos esses males, seria preciso fomentar uma variabilidade do titular do poder político e, para tanto, seria preciso que o titular de cargo eletivo não pudesse se manter no cargo, mesmo que sob nova eleição, por mais do que um mandato inteiro.

Logo se vê que, no que se refere à discussão da constitucionalidade (material) da Emenda Constitucional nº 16, a emenda da reeleição, de 1997, por ofensa a esse requisito da temporariedade, a consideração ora do primeiro argumento, ora do segundo levaria a resultados bastante diferentes.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Explicação e justificação

Há uma distinção lógica bastante conhecida entre explicação e justificação: na explicação se procura mostrar por que e como alguma coisa aconteceu (suas causas factuais), enquanto na justificação se procura mostrar por que e como alguma coisa é correta (suas razões normativas). Se, digamos, alguém oferece uma carona a outra pessoa por puro interesse pelo que esta outra pode fazer por ela no futuro, é possível, no plano da explicação, mostrar que ela fez isso movida por interesse pessoal e, no entanto, no plano da justificação, mostrar que o ato de oferecer uma carona é correto como ato de generosidade. Ela realizou um ato altruísta (oferecer carona) movida por um interesse egoísta (obter vantagem para si), o que torna a conduta (esse conjunto de ato mais intenção) egoísta e moralmente incorreto.

Da mesma maneira, num evento como a abolição da escravidão no Brasil, é possível ao mesmo tempo dizer, no plano da explicação, que foi um ato da Coroa brasileira cedendo a pressões internacionais, especialmente da Inglaterra, que estava interessada na afirmação do capitalismo e na formação de um mercado consumidor mais amplo no Brasil, e dizer, no plano da justificação, que a abolição da escravidão é correta, uma vez que a escravidão submete um ser humano a outro de modo que viola sua liberdade e ofende sua dignidade pessoal. Quer dizer, para que a abolição da escravidão tenha sido correta, não é necessário que o motivo desse ato tenha sido a intenção de proteger a liberdade e a dignidade dos escravos. Basta que ela se justifique moralmente como afirmação dessa liberdade e dignidade.

É por isso que se deve olhar com cuidado argumentos de crítica aos direitos humanos que dizem que tal ou tal direito só serve para atender a tal e tal interesse. Isso é até possivelmente verdadeiro em certos casos, pelo menos no sentido de que a adoção desses direitos em tratados internacionais e cartas constitucionais geralmente está ligada à satisfação de interesses e objetivos que são estranhos ao plano moral e que se enraizam mais diretamente no plano político, econômico, militar e diplomático. Contudo, mesmo que seja de fato assim, isso não torna o direito assim afirmado nem um pouco mais nem um pouco menos valioso que antes. Isso porque o seu valor, especialmente o seu valor moral, não tem a ver com os motivos pelos quais os Estados os adotam ou reconhecem, e sim com as razões pelas quais podemos dizer que estão corretos. Ora, se é possível defendê-los ou sustentá-los à luz de argumentos morais, então são moralmente corretos, independentemente dos motivos mais amorais ou mesmo imorais que possam ter tido aqueles que os propuseram ou realizaram juridicamente.

terça-feira, 3 de março de 2009

Ações Constitucionais

Com exceção das ações relativas ao controle de constitucionalidade concentrado, as ações que têm sede constitucional são:

Habeas corpus: remédio judicial que tem por finalidade evitar ou fazer cessar a violência ou coação à liberdade de locomoção, decorrente de ilegalidade ou abuso de poder (CF/88, Art. 5º, Inc. LXVIII).

Habeas data: ação que tem por objeto a proteção do direito do impetrante em conhecer todas as informações e registros relativos à sua pessoa e constantes de repartições públicas ou particulares acessíveis ao público, para eventual retificação de seus dados pessoais (CF/88, Art. 5º, Inc. LXXII, alíneas "a" e "b").

Mandado de segurança: ação contra lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus nem habeas data, em decorrência de ato de autoridade, praticado com ilegalidade ou abuso de poder (CF/88, Art. 5º, Inc. LXIX e LXX).

Mandado de injunção: remédio constitucional posto à disposição de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição (CF/88, Art. 5º, Inc. LXXI).

Ação popular: ação que visa anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. (CF/88, Art. 5º, Inc. LXXIII; Lei 4.717/65)

Ação civil pública: ação de que podem se valer o Ministério Público e outras entidades legitimadas para a defesa de interesses difusos, interesses coletivos e interesses individuais homogêneos. (CF/88, Art. 129, Inc. III; Lei 7.3.47/85)

domingo, 1 de março de 2009

Monarquia e república

Formalmente, a diferença entre monarquia e república é que na Monarquia o cargo de Chefe de Estado, ou seja, do Rei (ou Rainha) ou do Imperador (ou Imperatriz), é hereditário e vitalício, enquanto na República o cargo de Chefe de Estado, ou seja, do Presidente (ou Presidenta), é eletivo e temporário. (Obs.: O motivo por que estou chamando o Rei ou Presidente apenas de Chefe de Estado, e não de Chefe de Governo, é para que a definição dada valha inclusive para um regime parlamentarista).

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Federalismo (I)

1 - Federalismo: O que é?

Federalismo é o nome de uma forma de Estado e de uma doutrina.

Como forma de estado, indica a situação da Federação, ou Estado federal, ou federado, que consiste num Estado formado pelo reunião de Estados. Quer dizer, um Estado organizado em dois níveis: no primeiro nível, vários Estados autônomos (Estados estaduais), dotados de territórios próprios, estruturas executivas, legislativas e judiciárias próprias, cada uma com competências próprias, com arrecadação tributária e disposição orçamentária próprias etc; no segundo nível, um Estado formado pela união dos Estados (Estado federal), cujo território se confunde com o dos Estados, mas cujas estruturas executivas, legislativas e judiciárias são distintas, bem como sua arrecadação tributária e sua despesa orçamentária.

Como doutrina, é uma corrente de pensamento que não apenas defende a superioridade da Federação sobre o Estado unitário como ainda prescreve as condições e características que uma Federação deve preencher e ter para dar certo. Vejamos com que argumentos desenvolve as duas linhas de pensamento.

2 - Os Argumentos da Oposição Federalismo X Unitarismo

Há dois debates com que a oposição entre federalismo e unitarismo tradicionalmente se relacionou: o debate entre centralização e descentralização, preocupado com a eficiência administrativa, e o debate entre concentração e limitação de poder político, preocupado com segurança e liberdade. Mais recentemente, a questão se inscreveu também no debate entre universalismo e multiculturalismo, preocupado com questões de indentidade cultural e de convivência intercultural. Vejamos as principais linhas de relação desses vários debates com a oposição entre estado federado e estado unitário.

a) Federalismo e Centralização/Descentralização: O Federalismo combinaria as vantagens e evitaria as desvantagens das duas estratégias isoladas. As vantagens da centralização são a unidade e coesão, sendo suas desvantangens a excessiva homogeneidade e rigidez. As vantagens da descentralização são a heterogeneidade e a adaptabilidade ao contexto, sendo suas desvantagens as tendências à dispersão e ao conflito. Segundo o Federalismo, uma federação bem projetada teria no Estado Federal seu elemento de unidade e coesão, que não degeneraria em excessiva homogeneidade e rigidez por ter que interagir com os Estados estaduais; por outro lado, teria nos Estados estaduais seu elemento de heterogeneidade e adaptação ao contexto local, que não degeneraria em dispersão e conflito porque tais tendências seriam contidas pelo Estado federal. Uma Federação bem projetada teria, assim, o necessário equilíbrio entre centralização e descentralização.

b) Federalismo e Concentração/Limitação do Poder: Assim como acontece com a repartição de poderes entre as funções legislativa, executiva e judiciária, também a repartição de poder entre unidade estadual e unidade federal seria um instrumento de controle com vista a evitar o autoritarismo e promover a liberdade. Mas como é possível diminuir o autoritarismo e aumentar a liberdade tendo dois Estados (o federal e o estadual) com autoridade sobre o cidadão, em vez de um só? É que, em tese, numa federação bem projetada, sua repartição de competências estaria feita de tal forma que, a cada vez que um deles fosse além de sua competência, estaria invadindo a competência do outro, de modo que seria do interesse de ambos fiscalizarem-se e controlarem-se reciprocamente. Dessa forma, o cidadão poderia estar mais seguro contra abusos do Estado federal, porque o Estado estadual os fiscalizaria e reagiria contra eles, e mais seguro contra abusos do Estado estadual, porque o Estado federal os fiscalizaria e reagiria contra eles. Haveria, assim, um esquema de freios e contrapesos entre Estado federal e Estado estadual.

c) Federalismo e Universalismo/Multiculturalismo: Nas sociedades modernas, marcadas por uma pluralidade de culturas e subculturas que dividem e disputam o mesmo espaço geográfico, o mesmo mercado de produção, de consumo e de emprego e o mesmo poder político, o Federalismo ganharia uma terceira função: além de combinar inteligentemente as vantagens da centralização e da descentralização, além de garantir a liberdade do cidadão mediante um sistema de freios e contrapesos entre Estado federal e Estado estadual, teria também a função de criar um ambiente intercultural de convivência, pois, numa federação bem projetada, enquanto a esfera estadual, mais próxima dos grupos culturais, estaria mais apta a refletir sua diversidade, a dar-lhes condições de expressão não reprimida de sua identidade, a esfera federal, mais distante, estaria ocupada de criar condições universais de convivência entre os diversos grupos, de modo não identificado com nenhum deles em especial, embora preocupado com todos eles em geral. Nesse contexto, o Estado estadual seria um instrumento de expressão de identidade cultural, enquanto o Estado federal seria um instrumento de construção e manutenção de condições de convivência intercultural.

Que o Federalismo desempenhe bem esse triplo papel, porém, depende da existência da tal "federação bem projetada". E é aí que os debates se acirram e que as discordâncias vêm à tona. Uma só legislação penal federal é uma questão de unidade e coesão, ou é um sintoma de excessiva homogeneidade e rigidez? A falta de interferência da administração estadual na federal, e vice-versa, é um corolário da autonomia política de uma e de outra ou é uma falta de proteção ao cidadão vitimado pela negligência política de ambos? Como devem ser repartidas as receitas tributárias? Aborto, eutanásia, pena de morte, casamento homoafetivo, adoção por homossexuais, menoridade penal: quais desses devem ser fixados aos sabor da diversidade cultural, e quais devem ser universais, como condições básicas de convivência entre todas as culturas e subculturas de um mesmo país? A discussão sobre Federalismo fica realmente interessante e instigante quando se chega nesses pontos sensíveis.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Constituição de 1824

Declarada a Independência política do Brasil em 1822, organizou-se a partir de 1823 uma assembléia nacional constituinte, cujos trabalhos acabaram interrompidos e dissolvidos pela interferência de Dom Pedro I, que montou uma equipe, formada por pessoas de sua confiança pessoal, para elaborar um projeto, que se transformaria na Constituição outorgada de 1824, a primeira e mais duradoura das constituições brasileiras. Algumas das características principais dessa constituição eram:

A forma unitária de Estado: Ou seja, o Brasil, em vez de ser uma federação formada por vários estados, como é hoje, era um estado único ou unitário, dividido em províncias, carentes de autonomia política, e governado a partir de um governo central, sediado na capital, o Rio de Janeiro.

A forma monárquica de governo: O Brasil era oficialmente uma monarquia, cujo chefe de Estado e de governo era o Imperador Dom Pedro I, sendo sua sucessão hereditária e sua descendência considerada a Dinastia imperante.

A divisão de poderes: Adotava-se a divisão clássica de poderes, entre legislativo, executivo e judiciário, com acréscimo, ainda, de um quarto poder, o poder moderador, inspirado na sugestão, do pensador francês Benjamin Constant, de que era preciso um poder neutro, o "poder real", cuja função fosse promover a coordenação e o equilíbrio entre os demais poderes. Contudo, o poder moderador, tal como imposto pela Constituição de 1824, era bem mais que um poder neutro, coordenador e equilibrador, era um verdadeiro superpoder, dotado de prerrogativas de mando, de fiscalização e de veto sobre quase todo cargo e toda decisão dos demais poderes. Foi, na verdade uma forma de instaurar uma monarquia absolutista sob a forma disfarçada de uma monarquia constitucional.

O poder legislativo: Como o Estado era unitário, havia apenas na esfera nacional, representado na Assembléia Geral, órgão bicameral formado da Câmara de Deputados, com representantes eleitos pelo povo e com cargo temporário, e do Senado, com representantes indicados pelo Imperador e com cargo vitalício.

O poder executivo: Tinha como chefe máximo o Imperador e era também exercido, na escala nacional, pelos Ministros de Estado nomeados por ele e, na escala local, pelos presidentes das províncias, também indicados pelo Imperador entre suas pessoas de confiança e demissíveis "ad nutum".

O poder judiciário: Era exercido em três graus: os juízes monocráticos, na esfera mais local das cidades, os Tribunais de Relação, na esfera das províncias, com competência recursal e para ações de maior vulto, e o Supremo Tribunal de Justiça, com sede no Rio de Janeiro, com competência recursal e ações de foro especial.

O poder moderador: Na prática, o maior, mais poderoso e menos limitado de todos os poderes do Império. Era um verdadeiro poder absoluto, que tudo mandava, tudo controlava, tudo fiscalizava. Estava, naturalmente, concentrado nas mãos do Imperador, por quem era exclusivamente exercido.

O voto censitário: Havia vários requisitos para o exercício dos direitos políticos, entre os quais requisitos de renda: uma renda anual mínima de duzentos mil-réis para poder votar na eleição dos deputados, uma renda anual mínima de quatrocentos mil-réis para ser votado para deputado e uma renda anual mínima de oitocentos mil-réis para ser indicado, pelo Imperador, a senador. Como o requisito de renda era não apenas para votar, mas também para ser votado, seria mais exato falar em "cidadania censitária", do que apenas em "voto censitário".

Os direitos civis e políticos: O Art. 179 da Carta de 1824 elencava uma longa listagem de direitos fundamentais dos cidadãos, que incluía, no conteúdo e na terminologia adotada, vários dos direitos contantes do atual Art. 5º da CF/88. A Constituição de 1824 foi, aliás, uma das primeiras do mundo a trazer um rol tão detalhado de direitos e a dar a eles uma ênfase tão grande. Contudo, deve-se recordar que, dada a falta de limites impostos ao Poder Moderador, que implicava, na prática, num regime absolutista, tais direitos, embora explicitamente previstos e detalhadamente elencados, não constituíam uma garantia real aos cidadãos contra as possíveis interferências e abusos do Estado.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Bibliografia para Direito Constitucional II

Bom, o blog, embora voltado em princípio para os meus alunos, não está dirigido apenas a esse público, mas está escrito de modo tal que possa ser útil inclusive ao visitante eventual e anônimo. Contudo, permito-me uma licença para anunciar a bibliografia com que trabalharei em Direito Constitucional II, sob a desculpa de que tal bibliografia também pode ser de alguma utilidade para estudantes de direito que não tenham o karma de estar sob minha supervisão docente. Indico abaixo as obras principais, seguidas de um comentário.

1) J. J. Gomes Canotilho - Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Lisboa: Almedina, 2003. (R$ 249,00 no site da Livraria Cultura)

Não é apenas o melhor livro disponível na disciplina, como é um dos melhores livros de Direito em língua portuguesa e do mundo. O autor, brilhante constitucionalista português, faz um exame que vai muito além da exposição competente do Direito Constitucional positivo português, porque examina os temas mais relevantes do constitucionalismo contemporâneo, sempre a partir de sólidos fundamentos históricos e de diversos referenciais teóricos. Desvantagem: não é um livro para iniciantes e pode deixar o aluno um pouco perdido num primeiro momento.

2) Paulo Bonavides - Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. (R$ 79,12 no site da Companhia dos Livros)

É o melhor entre os manuais de autores brasileiros. O autor tem uma formação rica e sólida em história constitucional, em ciência política e em teoria geral do Estado. Suas análises teóricas são mais completas e mais profundas que as dos demais. Desvantagem: não tem uma linguagem tão acessível quanto de outros manuais.

3) Gilmar Ferreira Mendes - Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. (R$ 114,90 no site da Livraria de Direito)

Gilmar Mendes, cuja imagem ficou tão manchada pelo caso Daniel Dantas e pela súmula do uso das algemas, é, contudo, um dos mais bem preparados constitucionalistas do país, com formação, ao nível de posgraduação, num dos centros mais efervescentes do pensamento constitucional contemporâneo, que é a Alemanha, e com relatórios e votos distinguidos por sua argumentação sólida e seu rigoroso tratamento teórico. Seu livro é das melhores literaturas disponíveis. Desvantagem: não cobre todos os pontos dos programas regulares de Direito Constitucional.

4) José Afonso da Silva - Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. (R$ 77,19 no site da Livraria Última Instância)

Um clássico da disciplina, de leitura obrigatória até mesmo nos seus capítulos mais fracos, porque vem orientando e continua a orientar boa parte da reflexão teórica e da fundamentação judicial em Direito Constitucional. Desvantagem: Usa uma linguagem um tanto desnecessariamente rebuscada e é bastante superficial em alguns pontos.

Agora minha dica pessoal:

5) Uádi Lammêgo Bulos - Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva: 2008.(R$ 119,30 no site da Companhia dos Livros)

Autor menos conhecido e festejado, mas excelente livro, bastante completo (acredito que seja o mais completo, depois, claro, do Canotilho, que é hors concours) e analítico, com abordagem de ampla gama de teorias.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sobre a Dignidade da Pessoa (1)

Na postagem anterior, disse que a postagem seguinte seria sobre Konrad Hesse e a "força normativa" da Constituição. Pois é, não será. Não que esse tema não vá ser abordado, porque vai (já está até esboçado num rascunho salvo, que ainda pretendo revisar). Mas permito-me aqui uma digressão para tratar de uma tema outro. Se esse fosse um livro sobre Direito Constitucional, seria uma digressão indesculpável. Mas, como é apenas um blog, e o blog segue a ordem temática que o blogueiro quiser que siga, é admissível. Quero falar pela primeira, mas certamente não pela última vez, de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (constante, portanto, do Art. 1º da CF/88): a dignidade da pessoa humana (inc. III).

Há três questões a serem abordadas aqui:

1) O que é a dignidade da pessoa humana?

2) O que significa dizer que a dignidade da pessoa humana é um dos "fundamentos" da República Federativa do Brasil?

3) Em que contexto essa condição de "fundamento" pode fazer diferença prática?

Começo pela primeira questão. Dignidade é o valor próprio, que faz com que seu titular seja merecedor de respeito da parte de todas as pessoas. Nesse sentido, ser digno é uma condição: a condição em que se merece ser respeitado pelos demais. Com isso já pretendo afastar um dos equívocos comuns ao falar de dignidade, que é tratá-la como um direito que se tem. A dignidade não é um direito, e sim, ao contrário, é o fundamento dos direitos ou, se se preferir, é o motivo pelo qual se tem direitos. Não se pode ter direito à dignidade, porque (1) só faz sentido ter direito a certa coisa se essa coisa é do tipo que se pode ter ou não ter, que se pode conseguir ou perder, mas, se essa coisa é do tipo que está ligada a quem se é, se, não, importa o que se faça ou se deixa de fazer, jamais se deixa de tê-la, então a idéia de ter direito a ela não faz o menor sentido (seria comparável a ter o direito de ser um ser humano, ou o direito de ter um corpo etc.); (2) quando se fala de ter direito à vida, à liberdade, à igualdade etc., o motivo pelo qual se diz que certa pessoa tem esse direito é exatamente o fato de essa pessoa ser dotada de dignidade, ou seja, a dignidade é o fundamento ou a razão de ser dos direitos da pessoa, de modo que alguém que não tivesse dignidade não teria direito algum, porque estaria ausente o motivo pelo qual ela poderia ter algum direito. Nesse sentido, a dignidade tem algo em comum com a personalidade jurídica: ambas são condições indispensáveis para ter-se direitos. Mas, é claro, ter dignidade é, por assim dizer, uma condição material (um fundamento ou razão de ser) para ter direitos, enquanto ter personalidade jurídica é uma condição formal (um prerrequisito jurídico) para ter direitos.

O fato de a dignidade não ser um direito também torna sem sentido expressões como "perda da dignidade" e "negação da dignidade". A dignidade (na concepção moderna, como veremos daqui a pouquinho) é uma condição que se tem em razão do que se é (um ser humano), de modo que não se adquire nem se perde, não pode ser fornecida nem negada. Pode-se falar, sim, de ter direito a um tratamento digno, quer dizer, a um tratamento condizente com a dignidade que se tem, tratamento esse que, ele sim, poderia ser dado ou não à pessoa. Alguém pode ser digno e ser tratado de modo indigno, ou, o que é a mesma coisa, ser tratado como se não fosse digno. Mas ser tratado como se não fosse digno não é perder a dignidade. Tanto não é que se considera errado que certa pessoa seja tratada de modo indigno, e o fato de tal tratamento ser errado está ligado a não ser o tratamento devido, exatamente porque, tendo dignidade, aquela pessoa era merecedora de tratamento melhor. Ora, se alguém, por receber um tratamento indigno, perdesse a dignidade, então, esse tratamento deixaria de ser indigno, porque o motivo por que era indigno era ser dirigido a uma pessoa dotada de dignidade. Por exemplo, as condições de superlotação, falta de higiene, de segurança, de infraestrutura etc. que caracterizam os estabelecimentos prisionais que temos hoje ofendem a dignidade dos presos, mas não lhe tiram nem lhe negam a dignidade, embora não façam jus a ela. É apenas porque tais presos mantêm a sua dignidade que se pode dizer que ela não está sendo respeitada e que o tratamento que recebem está errado. Se tivessem perdido sua dignidade, teriam perdido o fundamento de seus direitos; logo, não teriam quaisquer direitos; logo, não estariam sendo desrespeitados; logo, não haveria nada de errado no tratamento que lhes damos. Algo que é importante lembrar: a dignidade é fundamento dos direitos, mas não é um direito; ela pode ser desrespeitada, mas não perdida; pode-se receber um tratamento indigno, mas não se pode deixar de ser digno.

O titular da dignidade é sempre o ser humano (não há que falar em dignidade dos animais ou das coisas, embora, no caso dos animais, existam discussões recentes, não apenas no campo filosófico, mas também nos campos político e jurídico, que colocam essa certeza em questão), mas, no que se refere a quais seres humanos são dignos, existem duas concepções de dignidade. Uma particularista, outra universalista. A concepção particularista considera que algumas pessoas são dotadas de dignidade, enquanto outras, não. De forma geral, foi a concepção que predominou na Antiguidade, quando certa classe de pessoas (os cidadãos homens livres adultos) eram dotados de dignidade e, assim, merecedores de respeito, enquanto outros (as crianças, as mulheres, os estrangeiros, os escravos etc.) não tinham dignidade e, portanto, não mereciam respeito. Ter ou não ter dignidade não dependia de simplesmente ser um ser humano, mas sim de ter certa condição social, ser determinado tipo de pessoa, pertencer a certo grupo, ter recebido certa educação ou treinamento, exercer ou ter exercido certa atividade etc. Assim, alguns eram dignos, enquanto outros não o eram.

A concepção universalista, por sua vez, considera que todos os homens são dotados de dignidade, pelo simples fato de serem homens, sem qualquer exigência ou requisito adicional. É a concepção que predomina na modernidade, que inspira as constituições modernas e a noção de direitos humanos. O grande porta-voz dessa concepção foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), que, na sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785), estabeleceu uma distinção entre coisas e pessoas nos seguintes termos: coisas podem ser trocadas umas pelas outras e só têm valor enquanto instrumentos para atingir os fins de alguma pessoa, por isso seu valor próprio é o preço (ou seja, aquele valor que pode dizer em que quantidade podem ser trocadas umas pelas outras); pessoas, por outro lado, não podem ser trocadas umas pelas outras e têm valor independentemente de servirem ou não como instrumento para atingir os fins de alguma outra pessoa, por isso seu valor próprio é a dignidade (ou seja, aquele valor que a torna merecedora de respeito e consideração por parte de todas as demais).

Para Kant, o que tornava as pessoas realmente diferentes das coisas era o fato de serem dotadas de racionalidade prática, quer dizer, de poderem determinar, por meio da razão, as suas ações, sendo, dessa forma, livres, diferentemente de todas as outras coisas na natureza, as quais, sendo guiadas por leis naturais, não exercem a sua vontade, mas se limitam a reproduzir um comportamento previamente determinado pelas circunstâncias e por outros condicionantes internos ou externos. Em outras palavras, Kant considera que o homem é capaz de agir com liberdade, por escolha própria, sem ser diretamente controlado pelas leis naturais, de modo que essa sua capacidade de escolha, que é a sua autonomia, precisa ser respeitada. Por isso Kant dizia que nenhuma pessoa pode ser considerada apenas um meio para a realização dos fins de outra pessoa, mas deve ser considerada "um fim em si mesma", quer dizer, dotado de valor e merecedor de respeito independentemente de servir ou não para a satisfação dos fins de alguém.

(Um comentário lateral. A essa altura alguns dos alunos que me lêem estão pensando: "Tá vendo só! É isso que dá colocarem um professor de Filosofia para dar aulas de Direito Constitucional: fica falando essas coisas sobre Kant e tudo mais, puxando a brasa para a filosofia, em vez de falar do conteúdo propriamente jurídico da coisa". A esses alunos pedirei só um pouquinho mais de paciência antes de mudar dessa página para a do Kibe Loko: daqui a pouco ficará mais claro o que há de juridico nessas considerações filosóficas.)

Portanto, se considerarmos que nossa Constituição, como todas as constituições modernas, adota a concepção universalista de dignidade (que atribui dignidade a todos os seres humanos, pelo fato de serem pessoas, e não coisas), a expressão "dignidade da pessoa humana" seria uma dupla redundância. Primeiro, quanto à parte da "pessoa humana", porque os únicos seres passíveis de serem "pessoas" são os seres humanos (mas aqui se poderia alegar que omitir o qualificativo "humana" poderia dar vazão à interpretação - equivocada - de que se trataria também da dignidade da pessoa jurídica, e não apenas da pessoa natural, entendimento que o próprio STF já afastou peremptoriamente; nesse caso, contudo, teria sido melhor dizer "pessoa natural" ou "pessoa física"). Segundo, quanto à parte da "dignidade da pessoa", porque, fora as pessoas, nada mais tem dignidade, de modo que a "dignidade" consagrada no texto não poderia ser outra que não a "dignidade da pessoa". Contudo, redundâncias à parte, deve-se considerar que a expressão "dignidade da pessoa humana" se refere à concepção moderna, e portanto kantiana e universalista, da dignidade.

(O aluno positivista mais cético pode aqui pensar: "Imagina! Os caras que elaboraram e aprovaram a Constituição de 88 e os que a aplicam diariamente não devem saber sequer que existiu um sujeito chamado Kant, quanto mais estarem conscientes de sua doutrina da dignidade". Bem, quanto a isso esse aluno tem razão: a maioria desses "caras" realmente não sabem nada sobre a doutrina kantiana. Agora, isso não prova nem que o dispositivo constitucional não tem relação com essa doutrina, nem que o conhecimento das idéias e dos argumentos de Kant não têm relevância para o emprego prático-jurídico da noção de dignidade. Quanto à raiz realmente kantiana do dispostivo, consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. Quanto ao uso prático dessas idéias, tal uso se mostra nas discussões sobre tratamento do estrangeiro, tratamento dos animais, tratamento das empresas, tratamento dos presos etc., como se verá mais adiante.)

Portanto, todos os seres humanos são dotados de dignidade pelo simples fato de serem seres humanos. Mas, pode-se perguntar: Se o que dota o ser humano de dignidade, distinguindo-o das coisas, é a sua racionalidade prática, então, o que faz com que seres humanos como fetos, doentes mentais, pacientes em coma e individuos já mortos tenham também dignidade? O feto ainda não pode agir livremente. O doente mental, se acometido de uma doença que atinja sua racionalidade, seu senso de realidade e sua autodeterminação pessoal, também não age nem racional, nem livremente. O paciente em coma sequer pode fazer escolhas ou expressar sua vontade, supondo que tenha alguma. O indivíduo morto já não tem mais nem existência, muito menos consciência e vontade (a não ser que se apele para alguma crença na sobrevivência da alma, que seria ou simples superstição, comprometendo a racionalidade da ordem constitucional, ou convicção de certa fé específica, comprometendo, nesse caso, a sua neutralidade religiosa). Sendo assim, se, segundo Kant, a autonomia é o motivo por que os seres humanos têm dignidade, então, por que esses casos de seres humanos não autônomos também são dotados de dignidade?

(Continua)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Constituição - O que é? (1)

Ao ler o título dessa minha primeira postagem, pode passar-lhe pela cabeça que esse é um tema introdutório, algo que não tem lá grande importância porque não desperta grande controvérsia e que só está presente aqui como uma espécie de obrigatoriedade formal, uma questão meramente ritualística e protocolar: começar a falar de Direito Constitucional falando sobre Constituição.

Afinal, quem teria dúvida sobre o que é a constituição? Não é óbvio que constituição é aquele livrinho com uma bandeira brasileira na capa, onde estão contidas as normas fundamentais do país? Não é óbvio que essas normas tratam da organização do poder político e da proteção dos direitos dos cidadãos, estabelecendo pautas obrigatórias para todos e condições básicas de nossa convivência social? O que ainda há para discutir sobre isso? Não basta ficar com essa noção inicial e seguir adiante?

Pois é. Não. Não basta. Há muito mais que isso para discutir.

Na verdade, não existe apenas um único conceito de constituição. Existem vários. E cada um deles apreende essa noção a partir de uma perspectiva distinta, com fundamentos, ênfases, propósitos distintos. Nessa postagem e nas próximas, vou esboçar alguns dos mais influentes conceitos de constituição, apontando seus respectivos autores. (Minha fonte principal será o cap. 3 do Curso de Direito Constitucional, de Uadi Lammêgo Bulos, associada com várias passagens do Direito Constitucional e Teoria da Constituição, de J. J. Gomes Canotilho.) Nessa primeira postagem vou abordar o conceito chamado de Constituição Sociológica, de Ferdinand Lassale.

O conceito de constituição sociológica, de Ferdinand Lassale, se tornou muito famoso e muito influente. Lassale, num texto célebre chamado "O que é uma constituição?" (na verdade uma transcrição da conferência que ministrou na Prússia em 1863), disse que uma constituição tinha que se apoiar nos fatores reais de poder, do contrário não passaria de uma folha de papel. Vamos tentar entender o que ele queria dizer com isso.

Bom, no momento em que se faz uma constituição, se faz essa constituição em e para certa sociedade, uma sociedade que já existe, em que já há certos indivíduos e certos grupos, certa organização econômica e política, certa distribuição da riqueza e do poder. Alguns grupos sociais têm mais poder, outros têm menos. Alguns grupos sociais mandam, outro obedecem, alguns exploram, outros são explorados, alguns têm controle direto do que acontece, outros são coadjuvantes do processo, levados pelo fluxo que não produziram. Ora, essa situação de riqueza e de poder que já existe é o que Lassale chama de "os fatores reais de poder". A idéia de Lassale sobre a constituição é que ela deve espelhar essa situação, quer dizer, deve atribuir poder a quem já tem o poder, deve garantir a riqueza de quem já tem a riqueza, de que ela deve apenas ratificar uma situação de distribuição da riqueza e do poder que já existe.

O motivo é que, para Lassale, os fatos têm mais peso que as normas. Para ele, se uma sociedade se organiza de tal forma que o grupo A tem mais riqueza e mais poder que o grupo B, não vai ser o fato de que uma constituição estabeleça que A e B devam ter a mesma quantidade de riqueza e a mesma quantidade de poder que vai fazer com que A e B se tornem realmente iguais. Pelo contrário, A vai continuar tendo mais riqueza e mais poder que B, e a referida constituição, na medida em que não reconhece esse fato, na medida em que o contraria ou se revolta contra ele, vai sucumbir no vazio, vai tornar-se apenas uma "folha de papel" sem importância real, sem efeito real, sem nenhuma correspondência com a realidade. Ao contrário, nesse mesmo exemplo, se a constituição estabelecesse que o grupo A tem mais riqueza e poder que B, como de fato já ocorre, aí sim ela teria força, uma força que ela extrairia dos fatos, correspondendo, assim, à realidade que efetivamente existe.

A tese de Lassale é de que as normas não mudam os fatos: ou as normas se apóiam nos fatos, enunciando-os como eles já são, e adquirem, por empréstimo, a força da realidade, ou as normas ignoram os fatos, enunciam um "dever-ser" que ainda não é, uma situação ideal que ainda não existe, e, nesse caso, se tornam um documento impotente, apenas uma "folha de papel" sem qualquer poder normativo, uma caricatura de norma, uma piada de norma. Acreditar que a constituição vai mudar a realidade, para Lassale, é bobagem. Normas são apenas traços impressos em papel. A força verdadeira vem dos fatos. Se ocorrer de o grupo B, que tinha menos poder, mudar sua situação e passar a ter o mesmo poder que A, será por causa de uma dinâmica que tem a ver com os fatos, os fatos da economia, os fatos da política, os fatos da cultura, os fatos da sociedade, e não com as normas.

Essa forma de ver a constituição, essa, digamos, concepção impotente de constituição (que no fundo faz com que ela seja sempre apenas uma "folha de papel", com a diferença de poder ser uma "folha de papel" que enuncia a realidade ou não) vai na contramão do movimento pelo qual as constituições surgiram na modernidade. As constituições, que foram filhas das revoluções burguesas (Revolução Gloriosa inglesa, Independência Norte-Americana e Revolução Francesa - das quais vou falar noutra postagem), pretendiam mudar a sociedade, mudar todos os costumes e todas as instituições, fazer a transformação do Ancient Régime ("antigo regime", quer dizer, o absolutismo monárquico e a divisão da sociedade em estamentos, com distribuição desigual de riqueza, de poder, de direitos e de deveres etc.) em Nouveau Régime ("novo regime", ou seja, as repúblicas democráticas, com poder limitado, com cargos eleitos e temporários, com representação popular etc.). Portanto, as constituições modernas surgem com a promessa de serem documentos tranformadores, verdadeiros motores da mudança social, marcos de uma nova era na história daquelas sociedades.

Lassale está dizendo que tal quantidade de poder de intervenção e tranformação sobre a sociedade não pode de modo algum ser atribuído à constituição. Uma constituição é apenas uma norma, e normas, para Lassale, não mudam fatos. Apenas fatos mudam fatos. Sendo assim, a Constituição inglesa, a Constituição norte-americana e a Constituição francesa na verdade não tinham aquele poder que se lhes atribuiu. Houve, de fato, grandes e profundas transformações naquelas sociedades, mas essas tranformações se deveram aos fatos (às mudanças políticas, à ascenção econômica da nova classe burguesa, à industrialização, ao imperalismo, à urbanização etc.), e não às normas constitucionais. Lassale estaria, assim, negando e procurando deixar para trás a noção moderna de Constituição como documento transformador. Ao contrário, a constituição seria um documento subalterno e impotente diante da realidade: ou a reconhece como ela é, ou se torna mera "folha de papel", sem nenhum poder.

Como veremos noutra postagem, o principal opositor dessa concepção de constituição foi Konrad Hesse, no texto "A força normativa da constituição", em que procura mostrar que uma constituição tem, sim, poder de transformação e que assumir para si esse poder não implica ignorar os "fatores reais de poder", que nunca podem ser descuidados. Esse será o assunto da próxima postagem.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Mensagem Inicial

Olá a todos os visitantes desse blog.

Aproveitando a experiência que terei, nesse primeiro semestre de 2009, de ministrar a disciplina Direito Constitucional II para quatro turmas da Faculdade de Castanhal (FCAT), decidi criar esse espaço para abordar temas pertinentes ao assunto. Dessa forma, espero contribuir com os estudantes de temas constitucionais, tanto os que serão meus alunos, como todos os demais que vierem a consultar essas postagens. Espero que gostem, que acompanhem e participem bastante por meio dos comentários.

Um abraço a todos!