segunda-feira, 15 de junho de 2009

Inconstitucionalidade da decisão da ADI 3510 por usurpação da soberania popular

Penso que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 3510, que considerou constitucional o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05), permitindo, assim, a utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, é inconstitucional.

Não que eu defenda a intangibilidade do direito à vida de embriões inviáveis congelados há mais que três anos, posição que, aliás, me parece absurda o bastante para só receber adesão de fanáticos religiosos.

Chego àquela conclusão porque a declaração de inconstitucionalidade de uma lei em confronto com texto da constituição, em sede de controle concentrado e abstrato (Art. 102, I, a, CF), pressupõe, para não extrapolar os limites de legitimidade do poder judiciário, num Estado democrático de direito (Art. 1º, caput, CF) regido pelo princípio republicano da soberania popular (Art. 1º, parágrafo único, CF), que o texto com que se confronta a lei em questão não contenha conceitos cujo sentido seja tão incerto e disputado que qualquer tentativa de concretizá-los e torná-los consensuais na instância judicial desborde inevitavelmente em usurpação do exercício da soberania popular.

E, a meu ver, é exatamente isso que ocorreu no caso em questão, uma vez que estava em jogo o sentido e a extensão do direito à vida (Art. 5º, caput, CF, c/c Art. 2º, in fine, CC) matéria que desperta fortes controvérsias entre distintos setores da sociedade brasileira, de modo que, quer o STF tivesse decidido que o direito à vida se estende ao embrião humano produzido por fertilização in vitro, quer tivesse decidido que não se estende, em ambos os casos teria tomado uma decisão que somente a própria sociedade poderia tomar.

E deveria tomar, de preferência de modo direto, por via de referendo (Art. 14, II, CF, e Art. 2º, §2º, da Lei nº 9.709/98) ao dispositivo em questão, oportunidade em que, ao longo de campanha em rádio e TV, os distintos posicionamentos a respeito do tema poderiam ser adequadamente expostos e debatidos a ponto de formar uma decisão popular informada e legítima para essa controvérsia.

Parece-me que, para permanecer no estrito limite de sua competência judicial, o STF deveria ter suspendido liminarmente a vigência do Art. 5º da Lei nº 11.105/05 e emitido, ex officio, ao Congresso Nacional, "mandado" (semelhante àquele que parte da doutrina considerou por bom tempo ser possível no caso do mandado de injunção) de apreciação de proposta de referendo, para que este, no exercício de sua competência exclusiva (Art. 49, XV, CF), o autorizasse.

(Tal "mandado" violaria o Art. 3º da Lei nº 9.709/98, que estabelece que o referendo deve ser proposto por um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, o que, a meu ver, poderia ser superado por uma hermenêutica constitucional que interpretasse o referido dispositivo de modo a ajustar-se melhor ao Art. 1º, parágrafo único, da CF, vendo a convocação do referendo, de que fala o artigo, como um dever do Poder Legislativo, o qual, se não observado, pode ser objeto de controle judiciário, sob pena de insegurança ao Estado democrático de direito, justificando-se também assim sua emissão ex officio, e de modo a relativizar, em nome da razoabilidade, o prazo de trinta dias, a contar da promulgação de lei ou adoção de medida administrativa, de que fala o Art. 11 da mesma Lei nº 9.709/98).

Na minha opinião, a decisão do STF no caso em questão (com a qual, deixe-se claro, até concordo) só teria legitimidade democrática se resultasse de manifestação popular por meio de referendo.

10 comentários:

Débora Aymoré disse...

André, acho que agora, lendo novamente esta postagem, entendi melhor o que você pretende defender com a questão da legitimidade no caso de uso dos embriões para a pesquisa com células-tronco.

No caso da ADI 3510 foi solicitada uma audiência pública, que conta com a participação de profissionais que, acho, poderiam dirimir dúvidas quanto a questões técnicas envolvidas na definição do começo da vida, que me pareceu ser a dúvida principal que deu ensejo a consideração de inconstitucionalidade do art. 5º da lei de biossegurança.

De qualquer modo, dependendo de como se compreendam as relações de legitimidade, talvez este instrumento da audiência pública não seja amplo o suficiente para decidir a questão que, diga-se de passagem, está implícita em todas as aplicações de pesquisa científica (por exemplo, o uso de sementes trangênicas, que também é regulado pela lei de biossegurança não parece ter sido amplamente debatido): queremos ou não as (ou todas as) aplicações científicas que atingem a todos nós?

Apesar da pouca discussão, parece-me que estas questões bioéticas ganharam mais força com a denúncia mais frequente dos impactos ambientais que nosso modo de vida consumista/tecnológico vem trazendo ao planeta.

Não sei se vai lhe parecer interessante ampliar tanto assim o debate, mas, de qualquer modo, você é o moderador.

Abraço.

Bruninho disse...

Bem, o STF vem nos últimos anos ganhando um papel não só de guardião da Constituição, mas também, de um verdadeiro garantidor da paz social.

As grandes questões, os grandes embates, que envolvem até os outros poderes, estão sendo pacificados pelo Supremo.
É uma "judicialização da política".

Acho essa nova posição interessante, uma vez que a resolução dos problemas pela política (do executivo e legislativo) deu lugar à tecnicidade do Judiciário, de forma que, buscar-se-á sempre soluções técnicas, precisas, objetivas, pra solução das mais capciosas questões.

Desculpe-me o professor André Coelho, mas só a Suprema Corte tem condições técnicas para decidir uma questão tão polêmica. E diga-se de passagem que foram feitas audiências públicas, foram ouvidos profissionais competentes de diversas áreas, as sustentações orais foram árduas e brilhantes, ou seja, o Supremo não decidiu ao acaso. O povo foi ouvido.

Bruno Rodrigues

Anônimo disse...

Bruno, obrigado por sua contribuição. A respeito da sua opinião, duas coisas:

A primeira é que, num sistema política democrático, as decisões serem tomados por quem "tem condições" de tomá-las pode entrar em conflito com elas serem tomadas por quem tem o direito de tomá-las. Trata-se de decidir entre qualidade técnica sem legitimidade ou legitimidade, que pode, sim, pecar pela falta de qualidade técnica.

A segunda é que é duvidoso até que ponto a questão sobre a proteção à vida é uma questão "técnica". Ela me parece uma questão política, sobre o que queremos para nós enquanto sociedade, e não me parece requerer nenhum conhecimento técnico especial.

A terceira é que o povo não deve ser ouvido, ele deve é decidir. Se alguém, depois de ter ouvido a sua opinião sobre quais mulheres você prefere, decidir por você com que mulher você vai casar, o fato de você ter sido "ouvido" não fazer muita diferença, porque, no fim das contas, quem decidiu mesmo foi outra pessoa.

Podemos prosseguir essa conversa, se você assim quiser.

Abraço

Bruninho disse...

Professor André, obrigado por sua resposta, fiquei lisonjeado. Vou seguir sua didática e responder por partes.

Bem, problemas de legitimidade sempre existirão. Se é verdade que todos têm amplo acesso ao judiciário é também verdade que aquele que foi vencido numa demanda judicial pode até não ficar satisfeito com a perda, mas terá que se contentar com o que foi decidido. Ou seja, o povo escolheu transferir para um terceiro (no caso, o STF) a palavra final sobre determinados conflitos. Então, devemos apenas acatar o que o Supremo disse. Friso que tal decisão não foi tomada ao acaso. Autoridades de ambos os lados foram ouvidas. Devemos separar falta de legitimidade (inconformismo com a decisão) com falta de obediência (desrespeito à decisão). No caso em tela, o Supremo agiu como verdadeiro guardião da Constituição. Podemos até não concordar, mas temos que respeitar e seguir o que foi determinado.

O Segundo ponto é quanto à necessidade de conhecimento técnico. Desculpe-me professor, mas, a discussão deste processo, do seu começo ao fim, foi essencialmente técnica. Tanto foi assim, que profissionais da área foram chamados. Tanto é assim, que vários dados científicos, técnico-objetivos foram levantados não só nas peças processuais, mas, também nas sustentações orais e nas próprias decisões dos ministros. Se não é assim, então por que audiência pública? por que ouvir profissionais da área? Onde se encontraria embasamento pra entender o que é embrião inviável? ou fertilização in vitro? células tronco – embrionárias? isso não é conhecimento técnico? é sim.

O senhor disse que essa é uma questão política e não técnica. Penso ser até perigoso considerar uma questão dessas como "política". Quando deixamos de analisar determinadas coisas com um olhar objetivo, criterioso, tendemos ao subjetivismo e assim ao arbítrio, e assim á barbárie. Enfim, gosto da idéia de reservar ao Supremo a decisão de questões como essa.

Quanto ao instituto da consulta popular, creio que ele deva ser reservado àquelas questões que não exijam conhecimento técnico pra sua resolução, por exemplo, você é a favor ou contra o desarmamento? Agora, veja a amplitude desta pergunta: Quando começa a vida humana? eu não tenho a mínima condição de responder à esta pergunta. E o senhor? tem? se nem os próprios ministros conseguiram respondê-la, pois tiveram que consultar especialistas, eu é que não tenho.

Termino com um fragmento do brilhante voto do ministro Gilmar Mendes na ADI 3510 alvo de tantas discussões.
“O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este
julgamento, que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o
parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o
pluralismo político, ético e religioso encontram guarida
nos debates procedimental e argumentativamente organizados
em normas previamente estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os expertos sobre a matéria
em debate, a intervenção dos amici curiae, com suas
contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como
a intervenção do Ministério Público, como representante de
toda a sociedade perante o Tribunal, e das advocacias
pública e privada, na defesa de seus interesses, fazem
desta Corte também um espaço democrático. Um espaço aberto
à reflexão e à argumentação jurídica e moral, com ampla
repercussão na coletividade e nas instituições
democráticas”.

Abraços, e mais uma vez agradeço a sua resposta.

Anônimo disse...

Bruno, não há de que agradecer, eu é que agradeço pela sua participação nesse debate.

Quanto à questão da legitimidade, meu fundamento são as teorias republicanas (Rousseau-Kant-Arendt-Habermas) em que se fixa que uma decisão é legítima quando cada um dos afetados por ela pode ver-se ao mesmo tempo como seu autor e seu destinatário. Sendo assim, legitimidade não é "aceitação", que está no plano factual, e sim "aceitabilidade", que está no plano normativo.

Também não é muito claro de que maneira o povo teria passado essa autorização de decidir questões fundamentais ao STF. Em que você se baseia para dizer isso?

De resto, sobre o caráter técnico ou não da decisão em questão, tudo se trata de distinguir entre início da proteção à vida (que é uma decisão normativa do direito) e início da vida (que é uma questão empírica da biologia). Remeto-o aqui a uma postagem de meu outro blog, Filósofo Grego, sobre a questão.

É esta: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2009/03/inicio-da-vida-uma-questao-biologica.html

Abraços

Bruninho disse...

Professor André,

Quanto à questão da legitimidade do STF em decidir questões fundamentais, eu me baseio na própria Constituição Federal, que deu à egrégia corte a condição de guardiã da Carta Magna. Assim, qualquer dúvida de interpretação deve ser dirimida pela Suprema Corte.

Quanto ao início da vida, o senhor disse que é uma questão empírica da biologia. Concordo, e o Supremo Tb. Tanto que foi ouvido, por exemplo, o ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO.

Quanto à questão da legitimidade quanto aceitabilidade, não vejo decisão mais aceitável quanto esta do Supremo. Tanto que jamais se cogitou sua falta de competência normativa para tratar do tema. Uma questão que chegou à ele, sob a forma de ADI, ação de sua exclusiva competência abstrata. Visto ser ele o guardião da Constituição.

Também vejo que não há decisão com mais aceitação no plano factual do que esta. Afinal, olha quantos setores da sociedade foram ouvidos: CONECTAS DIREITOS HUMANOS, MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE, ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO, CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB. Setores diferentes uns dos outros, dispersos em toda a sociedade.

Assim, concluo que tal decisão tem legitimidade tanto normativa quanto factual, pois, encontra respaldo tanto na Constituição quanto na sociedade (ali representada pelos diversos institutos ouvidos).

Anônimo disse...

Caro Bruno, o fato de a Constituição atribuir competência a certo órgão para tomar certa decisão não torna esse órgão legítimo para tal decisão. Legitimidade não é uma questão jurídica, e sim política, não no sentido de política partidária e eleitoral, mas no sentido da teoria política, especialmente a teoria da democracia (v. HABERMAS, Jürgen. "Três modelos normativos de democracia", in: A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2003).

Não estou, é claro, negando que o STF tenha legitimidade para dirimir controvérsias interpretativas constitucionais, o que nego, sim, é que haja, neste caso, uma controvérsia interpretativa. O que há não é a necessidade de determinar o alcance que a proteção à vida já possui, e sim de determinar se queremos ou não que esse alcance se estenda para certos estádios primitivos da vida, como é o caso dos embriões congelados. Essa não é uma decisão jurídica sobre as normas que temos, é uma decisão política sobre as normas que queremos ter.

Quanto ao caráter da questão sobre o início da proteção à vida, ela não é, nem pode ser, uma questão empírica. A biologia não pode nos dizer a partir de que estádio de desenvolvimento vital a vida humana deve ser juridicamente protegida. Não pode porque não há nada que nos obrigue a proteger a vida humana desde suas mais primitivas manifestações biológicas. Afinal, o direito pode definir o alcance de "vida humana" que quer proteger e pode determinar quando é, para fins jurídicos, e não biológicos, o "início da vida" que levará em conta. Se um cientista me prova que um embrião já está vivo, está apenas me provando que, à luz dos critérios de identificação da vida usados na biologia (e que nada têm de naturais, sendo metodológica e epistemologicamente construídos segundo os cânones e propósitos daquela disciplina), o embrião deve ser classificado como "vivo", mas isso ainda não me diz nada sobre proteção jurídica alguma.

Assim como o direito pode considerar "morto" aquele que já teve morte encefálica (embora, do ponto de vista biológico, ele ainda esteja vivo), pode considerar não-vivo o embrião mesmo que, do ponto de vista biológico, ele já tenha vida. Simplesmente porque conceitos jurídicos são diferentes de conceitos biológicos.

Então por que o STF ouviu tantos cientistas, médicos e especialistas? Porque o STF raciocinou sobre a questão em termos de um naturalismo ingênuo, que não percebe o caráter construtivo dos conceitos jurídicos e não percebe que não é a biologia, e sim a nossa vontade, a nossa decisão, a única capaz de determinar qual o termo inicial da vida e da proteção à vida em sentido jurídico.

Bruninho disse...

Bem professor, acho que já temos 2 posições antagônicas. Obrigado pela discussão.

Anônimo disse...

Certamente que temos, o que é ótimo para fomentar a divergência e a discussão. Obrigado por ter alimentado esse debate.

Abraço

Amantes do Direito disse...

Adorei seu blog, seus textos são excelentes!!
Depois de uma passadinha no meu se gostar me siga!!
=)
http://amantesdodireito.blogspot.com/